domingo, 10 de junho de 2012

O Projeto do Teatro do Oprimido na Comunidade como espaço de constituição de saberes


Artigo Publicado em CD, nos anais do XIV Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire.

Graziele Soares de Barros
Maurício Mezzomo Dias; Fabiane Tejada da Silveira.
Universidade Federal de Pelotas – UFPel
graziele.barros@yahoo.com.br
mauriciomezzomo.ator@hotmail.com
ftejadadasilveira@ig.com.br

Eixo Temático: PAULO FREIRE e a Arte, a cultura e a educação interdisciplinar.

Resumo: Este texto apresenta reflexões acerca do trabalho do Projeto de Extensão Universitária, denominado “Teatro de Oprimido na Comunidade”, no período de 2010 e 2011. O projeto proposto pela Universidade Federal de Pelotas desenvolveu suas atividades em dois bairros da cidade de Pelotas-RS e tem como principais referências teóricas Augusto Boal e Paulo Freire. O principal objetivo do grupo é desenvolver a autonomia dos sujeitos a partir da reflexão e ação deste sobre sua realidade.

Palavras-chave: teatro; comunidades; estética do oprimido; saberes.

O grupo “TOCO”, que se define a partir do Projeto de Extensão Teatro do Oprimido na Comunidade, é formado por voluntários, acadêmicos/as e uma professora do Curso de Teatro - Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas(UFPel) e tem como objetivos desenvolver atividades de Teatro do Oprimido nas Comunidades de periferia da cidade de Pelotas e região sul do estado do Rio Grande do Sul, em Seminários acadêmicos, Fóruns e outros espaços pré-determinados. 

Em Pelotas o grupo criado em 2010 desenvolveu, até o final de 2011, suas atividades regulares nos bairros Dunas e Z3, com um público formado, principalmente, por mulheres das comunidades. Os acadêmicos do Curso de Teatro-Licenciatura da UFPel, buscam envolverem-se com as comunidades afim de encontrar nestes espaços um diálogo entre saberes1 para sua constituição enquanto futuros professores de Teatro.

O Teatro do Oprimido é uma proposta de que reúne Jogos e Técnicas Teatrais elaboradas pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal. Os seus principais objetivos são a democratização dos meios de produção teatral com o acesso das camadas sociais menos favorecidas e a transformação da realidade através do diálogo, baseado na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e do teatro. Para Boal, 

O teatro ou teatralidade é aquela capacidade ou propriedade humana que permite que o sujeito se observe a si mesmo, em ação, em atividade. O autoconhecimento assim adquirido permite-lhe ser sujeito (aquele que observa) de outro sujeito (aquele que age); permite-lhe imaginar variantes ao seu agir, estudar alternativas. O ser humano pode ver-se no ato de ver, de agir, de sentir, de pensar. Ele pode se sentir sentindo, e se pensar pensando (2002, p.27). 

Partindo do diálogo, o grupo trabalha com as seguintes técnicas teatrais: Teatro Fórum, onde seus integrantes apresentam uma cena (pré-definida e ensaiada) em que um ou mais personagens sofre uma situação de opressão, onde a plateia tem o poder de interromper a ação e assumir o papel da personagem oprimida, mostrando de que maneira, em sua opinião, ela deveria agir para sair da situação de opressão – para isso, o “espect-ator” tem que tomar o lugar da personagem. Teatro-Imagem, a encenação baseia-se nas linguagens não-verbais. Esta técnica teatral transforma questões, problemas e sentimentos em imagens concretas. A partir da leitura da linguagem corporal, busca-se a compreensão dos fatos representados na imagem, que é real enquanto imagem. 

Estas duas técnicas, principais usadas pelo grupo desde sua constituição, vem contribuindo para algumas transformações, tanto nas comunidades atuantes quanto no próprio grupo. 

Salientamos que uma comunidade é constituída por pessoas com proximidade, sejam elas geográficas ou ideológicas. Kershaw (apud NOGUEIRA, 2007) vai definir, neste sentido, comunidade local e comunidade de interesses. Salienta-se assim uma função estrutural e ideológica da comunidade com intuito de “mediar os indivíduos e a sociedade mais ampla” (WILLIANS apud NOGUEIRA, 2007). A comunidade de interesse é também chamada (BOAL apud NOGUEIRA, 2007) de grupo temático. Um grupo temático se reúne por razões fortes e comuns entre seus membros.

Entendendo desta forma o conceito de comunidade, podemos partir para o conceito de “teatro na comunidade”. Esta forma teatral também vai ter foco nos interesses da comunidade, por mais que estes possam ser desvirtuados, ou mesmo desconhecidos por aqueles que fazem o teatro. E de acordo com aqueles que produzem o teatro na comunidade podemos diferenciar entre os seguintes modelos propostos por Nogueira (2007): teatro para comunidades, teatro com comunidades e teatro por comunidades. Para, por e com são simples preposições essenciais para diferenciar quem faz e o foco na comunidade.

Teatro feito para a comunidade é todo o teatro feito por sujeitos de fora da comunidade e que vem carregado de mensagens, porém não se conhece anteriormente a realidade do público a quem é destinado. Com comunidades implica a investigação prévia da comunidade com intuito de criação de espetáculo. E por fim, o teatro feito por comunidades é aquele que coloca o sujeito da comunidade na ação do espetáculo.

O Teatro feito por comunidades foi fortemente influenciado por Augusto Boal. Ele propõe que o individuo seja o sujeito da ação, que participe do processo de criação e coloque em cena a sua voz e a de sua comunidade. O teatro feito por comunidades tende a valorizar mais a história e a existência desta e do sujeito que faz parte dela, preservando sua memória ou servindo como sua expressão política, dando a um grupo a capacidade de lutar por ideais.

O Grupo Teatro do Oprimido na Comunidade, desenvolve suas atividades nas comunidades na tentativa de implementar um teatro feito por comunidades, procurando incentivar que os sujeitos envolvidos na experiência teatral, pronunciem sua palavra, a partir da ação proposta pelo jogo teatral. A partir do momento em que o sujeito entra em “cena” ele age a favor da sua compreensão acerca da realidade, procurando resolver um problema de opressão proposto na cena.

Neste momento o “espect-ator” que não é mais aquele que apenas assiste passivamente, entra no “jogo” para “dialogar” sobre a realidade. Neste momento observamos que o sujeito aprende sobre as questões opressoras do contexto social ao qual está inserido. Boal destaca em sua obra que o teatro com maior reconhecimento e divulgação na cultura ocidental pressupõe um espectador com características apáticas, objetificado diante de um ator que representa determinado conflito. Este teórico do teatro reconhece que os opressores exercem suas opressões para além da posse das armas e do dinheiro: pela posse da palavra, da imagem e do som (2009).

A estética, para Boal, não é vista como ciência do belo, mas, sim, como “ciência da comunicação sensorial e da sensibilidade. É a organização sensível do caos que vivemos, solitários e gregários, tentando construir uma sociedade menos antropofágica” (2009, p. 31). Para o autor, vivemos numa sociedade em que precisamos estar juntos, mas, ao mesmo tempo em que estamos juntos, nos fazemos mal. Sendo assim, a Estética do Oprimido propõe uma arte pedagógica inserida na realidade política e social de que faz parte, capaz de organizar, pela experiência sensível, o diálogo entre as pessoas, buscando estimular a cultura própria dos segmentos oprimidos.

O grupo de estudantes que participam deste projeto, avaliam que no contexto atual da aprendizagem, o que se tem percebido é uma quantidade relevante de informações circulando em todos os meios de comunicação, enquanto os meios de acesso ao conhecimento continuam precários. A partir dessa premissa nos voltemos para o que Paulo Freire diz sobre o ato de adquirir conhecimento, que seria construir categorias de pensamento a partir de algo que se deseja conhecer, algo que seja selecionado dentre um mundo de informações que, muitas vezes, não passam de lixo. Conhecer é uma condição do ser humano, por isso deve ser um processo constituído a partir dos interesses que defendem a causa humana.

Observamos que na sociedade atual o conhecimento construído está em grande parte, subordinado aos interesses da política econômica produzida pelo sistema capitalista, onde é parte do arsenal produzido pelos interesses externos ao humano, voltado para o desenvolvimento do lucro, e dos processos de dominação.

Paulo Freire também afirma que se aprende através das próprias experiências, a vida toda e é preciso de tempo para aprender. Aprende-se o que tem importância para si, sendo que acumular conhecimentos não é aprender. E a frase que da o maior exemplo da dialogia freiriana é: “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.” (FREIRE, 1997, p.25). Neste sentido, os estudantes de teatro envolvidos no projeto em questão, estão apreendendo com os grupos com quem trabalham, entrando em contato com os diferentes diálogos promovidos pelas ações expostas nas cenas teatrais dos “espect-atores” das comunidades onde atuam. Todos ensinam e todos aprendem.

Gadotti (2002), comentando a atualidade de Paulo Freire, nos faz pensar também a respeito da educação utilitarista que se vem instalando cada vez mais nas instituições de ensino. Contrapõe a noção de saberes à de competências. Essa última remete a ideia de um sujeito tornando-se ferramenta produtiva para o sistema capitalista, formam-se indivíduos com competências para atuar em diversos setores da sociedade, mas cada vez menos são formados seres humanos. É necessário que o ser humano não seja um simples individuo de competências, mas sim um sujeito do conhecimento que saiba pensar e saiba o porquê aprende e o que aprende.

Na formação de um sujeito é necessário, além de saberes e conhecimentos, competência para coloca-los em ação, para que seus pensamentos não gerem transformação apenas em si mesmo, mas também em uma escala maior. Também o teatrólogo brasileiro Augusto Boal na descrição da Estética do Oprimido (2009) destaca a importância da ação, transformadora por si, seguida do pensamento crítico.

Segundo Freire um sujeito está em formação constante, sendo este influenciado pelo meio em que vive pelas pessoas com quem se relaciona e pela sua história pessoal. Desta forma o ensino-aprendizagem para a construção de um sujeito deve ser elaborado de acordo com os interesses de um grupo, posto que o coletivo, expressão deste grupo, faz parte do sujeito, e o sujeito com suas particularidades contribui para a constituição do coletivo.

Para que essa transformação ocorra e cheguemos ao pensamento crítico, fundamental para que o processo de transformação social seja desencadeado, Freire nos aponta um elemento essencial, o sonho. Mas não um sonho dissociado da realidade e completamente utópico e sobrenatural. Um sonho deve ter por base o meio em que o sujeito está inserido. Segundo Freire (2000; p.53-54) “A transformação do mundo necessita tanto do sonho quanto a indispensável autenticidade deste depende da lealdade de quem sonha às condições históricas, materiais, aos níveis de desenvolvimento tecnológico, científico do contexto do sonhador.”.

O processo de formação de um sujeito deve confundir-se com o processo de humanização. Cada ser que se forma deve, ao fim e ao cabo, ter autonomia e liberdade crítica, para que não mais precise ser estimulado para a transformação, mas que tenha em si o conceito de que é um ser humano e, portanto, passível de sonhar, realizar e transformar, seja em sua parte ou no todo.

No Projeto Teatro do Oprimido na Comunidade, busca-se esse processo de humanização. Através de técnicas teatrais o indivíduo pode tornar-se sujeito de sua ação, e torná-la transformadora, e mais que isso, pode criar um sonho, pois observa, pensa, sente e age sobre sua realidade. O TOCO busca que cada sujeito crie autonomia a partir da reflexão e ação sobre sua realidade.

Além disso, é foco do projeto fazer com que os sujeitos dessas comunidades criem liberdade crítica, para que não mais recebam o que a sociedade lhes impõe como sendo o correto, mas sim saibam distinguir entre o que lhes acrescentará e o que lhes diminuirá. É foco do projeto fazer com que o oprimido reflita sobre e saia desta condição por si mesmo, e então transforme sua relação de opressão. O grupo TOCO idealiza sujeitos de sua ação e de seu pensamento, a partir da sua comunidade.
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Notas:
¹ Para FISHER e LOUSADA (2008; p.377) “[...] na concepção dialógica da educação, existem diferentes tipos de saber, não hierarquizados, não merecendo ser classificados mecanicamente como válidos ou inválidos. Dessa forma, são considerados relevantes os saberes dos educandos inseridos no espaço escolar ou noutras alternativas em educação, elaborados na vida cotidiana, ou seja, trata-se dos saberes de experiência feitos que são elaborados na experiência existencial, na dialógica da prática de vida comunitária em que estão inseridos, no circuito dialógico, “homens-mulheres-mundo”.

Referências:
BOAL. Augusto. A Estética do Oprimido: reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e não científico. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
______________O Arco –íris do desejo. Método Boal de Teatro e Terapia. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
_____________ Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
GADOTTI, Moacir. Atualidade de Paulo Freire - Continuando e reinventando um legado. Anais do 3º Fórum Internacional Paulo Freire, Milão, 2002. Acessado em: http://siteantigo.paulofreire.org/pub/Institucional/MoacirGadottiArtigosIt0044/Atualidade_PF_2002.pdf 24/04/2012
NOGUEIRA, Marcia Pompeo. Tentando definir o teatro na comunidade. Anais da IV Reunião Científica (ABRACE), 2007. Acessado em: http://www.portalabrace.org/ivreuniao/GTs/Pedagogia/Tentando%20definir%20o%20Teatro%20na%20Comunidade%20-%20Marcia%20Pompeo%20Nogueira.pdf. Acessado em: 15/04/2012
FICHER, Nilton Bueno e LOUSADA, Vinícius Lima. SABER (erudito/saber popular/saber de experiência) in: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides e ZITKOSKI, Jaime José (Orgs). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

domingo, 3 de junho de 2012