domingo, 9 de janeiro de 2011

Teatro do Oprimido na Comunidade

O teatro na luta contra as opressões

Integrar o grupo de Teatro do Oprimido na Comunidade, ao longo destes oito meses, tem sido uma experiência quase inenarrável – ainda que, aqui, eu tente narrá-la um pouco. Estivemos, diversas vezes, em duas comunidades (Dunas e Z3) da periferia de Pelotas e, como convidados, em alguns eventos acadêmicos. Levamos atividades e propostas, conversamos com estas pessoas, ouvimos suas histórias, seus problemas... Nosso estímulo – e pretensão! - é pensar que, ao torná-las conscientes de sua posição - muitas vezes de oprimidas, às vezes de opressoras - podemos, de algum modo, estar ajudando-as a repensar suas posturas de vida e a acreditar que é possível, sim, reagir, agir, mudar, exigir seus direitos, fazer-se respeitar, livrar-se da opressão...Viver melhor.

O alicerce do nosso trabalho está firmado em duas ideias-bases muito sólidas: do pedagogo Paulo Freire e do teatrólogo Augusto Boal. Freire pensa a educação, tendo por “arma” a palavra; Boal pensa o teatro e a ação teatral é seu instrumento de luta. Ambos, contudo, focalizam a batalha no mesmo inimigo: a opressão, percebem a importância da história pessoal e da cultura da comunidade no processo de emancipação e defendem a reflexão, seja por meio da palavra ou da ação teatral, como caminho para a conscientização do homem como ser político, que precisa estar ciente de sua situação de oprimido para ser capaz de superá-la.

Num mundo em que se tem cada vez mais informações e menos tempo de refletir sobre elas, numa época em que a violência e o desrespeito são banalizados, em que prevalecem os valores do consumismo exacerbado - ninguém está, jamais, satisfeito com o que tem - e o “futuro perfeito e inalcançável” parece mais importante que o presente, o teatro do oprimido chega como um momento para parar, refletir, repensar o mundo que nos cerca, o problema do nosso vizinho, de “nos repensarmos”, enquanto cidadãos políticos.

É curioso pensar que, mesmo quem nunca fez teatro, nunca sequer cogitou ser ator, no momento em que se sente provocado pela cena apresentada, “se joga” na proposta e esquece que é teatro. Naquele momento, por breves instantes, as pessoas ficam tão envolvidas com a situação, ao se identificarem com ela, que é como se não fosse teatro, a cena passa a ser a realidade de todos. Uma realidade que muitos já vivenciaram, na prática, ou sabem de alguém que vivenciou, e precisa ser mudada. “O oprimido reconhece a necessidade da liberdade. O teatro liberta, mas é preciso derrubar muros”. As frases de Boal - que estão impressas em nossas camisetas de trabalho - sintetizam nosso ideal. Nós, do Toco, montamos a proposta, em geral a partir dos relatos da própria comunidade, mas cabe a eles “derrubar os muros”. O teatro é um meio para fazer refletir sobre as situações de opressão que eles vivenciam, mas as respostas, as saídas – se existem – devem partir deles.

Às vezes as soluções para os problemas aparecem na hora. Outras, não. Mas a frustração é burlada pelas pequenas conquistas de cada encontro, como a declaração de dona Julieta que – aos 86 anos! – conta que “adorou as atividades e nunca tinha visto nada parecido”. Ora, proporcionar uma experiência diferente e agradável a uma senhora de 86 é, sem dúvida, uma grande conquista. Conversar com estas mulheres, conhecer um pouco de suas vidas, de sua vivências, é um privilégio. Como comentou a assistente social Alice, presente em nosso último encontro no Dunas, no dia 4 de dezembro de 2010, é melhor discutir os problemas “representando cenas do cotidiano e as inúmeras possibilidades e ações que podemos optar em fazer, ao invés de só reclamar e deixar passar o tempo”. O Toco está aí para isso. Para deixar a ferida exposta, não para colocar curativos. Aberta ela terá mais chances de sarar. É preciso reconhecer as situações em que somos oprimidos para poder estar preparado para reagir. Resignar-se diante de qualquer situação, aceitar humilhações, abusos, vai matando a pessoa que somos, aos pouquinhos, vai destruindo nossa humanidade. O corpo pode durar ainda muitos anos, como se fosse uma máquina. Mas onde está a pessoa, viva, pulsante, que se indigna com as injustiças?

O que me fascina neste trabalho com o Toco é a possibilidade de que a gente possa, realmente, fazer alguma diferença na vida destas pessoas. Não resolveremos tudo, como em um passe de mágica, mas podemos, sim, fazê-las repensar suas posturas diante da vida. O teatro-fórum e outras metodologias do teatro do oprimido podem ser uma fonte de estímulo para que elas mesmas façam estas mudanças, para que se percebam – quando for o caso – enquanto oprimidas e que é possível, sim, sair desta situação. O que me seduz é imaginar o que estas encenações podem fazer dentro das pessoas, sobretudo daquelas que, no momento da atividade, não reagem... Ficam lá, quietas, apenas observam. Mas o que se passa dentro delas? O que se passará quando estiverem a caminho de casa, ou uma semana mais tarde, deitadas na cama, ou um mês depois, tomando um chimarrão...? O que me estimula é a ideia da sementinha que elas podem estar levando dentro de si e que pode vir a germinar a qualquer momento... A sementinha que traz o reconhecimento de seu papel no mundo em que vivem e a importância que têm dentro da comunidade, como cidadãs participativas, que podem fazer a diferença para si mesmas e para os outros. Nosso objetivo maior, enquanto ‘tocomanos’, é fazê-las perceber que são importantes, que a opinião delas, de cada uma, conta e muito, que elas têm potencial transformador e que, se querem um mundo melhor, mais justo, depende, mais do que qualquer coisa, da atitude delas mesmas diante da vida.

Pelotas, 13 de dezembro de 2010.

Joice Lima

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